É sempre assim no dia de Natal. Acordamos tarde, ainda embebidos
pelas delícias da noite anterior, quando a família reunida se dedicou a matar
saudades, lembrar histórias e se emocionar com pequenos detalhes que anualmente
permeiam a nossa “noite feliz”: um acorde dolente de uma canção chorosa, uma
alegria espontânea de uma criança que acredita em Papai Noel, um brinde, um
discurso, uma oração.
Depois de tantos anos, minha
família ganhou um desenho diferente, traçado pelos pincéis das transformações
que inexoravelmente bombardeiam nossas tradições. Pais sem a presença de seus
filhos ou filhos sem a companhia de um dos pais; casais que não se casaram, ou
separados que se reencontram como amigos; fortes que hoje são fracos e jovens
que hoje não são tanto. Um desenho que desafia o conceito hegemônico de família
e que carrega sentimentos capazes de superar violentas tempestades e se
manterem de pé.
Nesse turbilhão, somos o
casal gay, em fase de comemoração de dezenove anos de relacionamento, o que nos
confere autoridade e estabilidade para sermos reconhecidos como parte daquela
salada. As famílias gays ainda são vistas como efêmeras, prestes a uma
dissolução eminente. Por mais que durem, por mais sólidas que sejam, não
conseguem vencer a expectativa de um fim doloroso e trágico, ao estilo dos
dramalhões mexicanos.
A parte gay da família dá
trabalho a todo mundo. Exige dos não gays conhecimento do que é politicamente
correto (e incorreto) e uma noção clara do limite entre intimidade familiar e
invasão de privacidade. Exige controle das piadinhas e perguntas indiscretas,
limite nas gozações e brincadeiras em torno de masculinidades e feminilidades,
e, principalmente, exige um discurso coerente, pronto para esclarecer aos
questionamentos embaraçosos das crianças, ainda dominadas pelas orientações
limitantes dos padrões heterossexistas.
Essas ocasiões exigem de
nós, gays, comportamentos moderados: nada que, aos olhos dos adultos, possa
assustar os mais velhos ou influenciar as crianças. Manifestações de afeto discretas,
mesmo no momento da troca de presentes ou nos votos de felicidades da
meia-noite, quando se renovam as declarações de amor e juras de eternidade
entre os casais que se amam. No máximo olhares profundos que dizem coisas que
não se diz todo dia e um selinho fortuito na esperança de que ninguém esteja
olhando, mas que recebe os holofotes da indiscrição e será motivo de
comentários futuros, seja de censura, seja de admiração ou puro veneno.
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