sábado, 26 de dezembro de 2009

Instantes - 26/12/09



Neste momento, em algum lugar, alguém está conhecendo alguém com quem viverá feliz para sempre. No mesmo instante, alguém estará aprendendo que para sempre, na verdade, se constrói a cada dia. Alguém deve estar saltando uma ponte, olhando uma estrela, beijando um amante ou chorando uma perda. Nosso planeta tem instantes suficientes para cada um de nós, ao mesmo tempo.

Cabe a mim, neste instante, uma varanda silenciosa e escura, de onde assisto o meu companheiro entretido com as notícias da TV. O mesmo companheiro que há 17 anos conquistou com delicadeza e ternura o meu coração. Coube a mim, naquele instante, percebê-lo no meio da multidão, abordá-lo e conhecê-lo. Foi ele o escolhido para me mostrar como é possível construir uma família diferente, formada por dois homens, alguns objetivos e muitas indignações em comum.

Como testemunhas daquele instante, centenas de gays, cada um com seu instante, se acotovelando na pista da boate Fashion, em Belo Horizonte, de onde saímos para nossa primeira forte emoção, tendo como tela as luzes da cidade. Se o começo de um novo ano apontava um caminho rumo a mim mesmo, me oferecia, naquele instante, o parceiro que iria catalisar em mim os elementos que há muito precisavam se entender e tornar a vida menos doída. Eu era um homem cansado de me negar e não existia mais motivo para ter medos.

Jamais poderia imaginar que aquele instante seria tão determinante em minha vida. Um encontro intenso, emocionante, de dois adultos experimentando seus desejos adolescentes; dois homens que se viam de frente e que se encantavam com o que viam. O instante mágico que fez com que optássemos um pelo outro desde então. O final de muitas mentiras e o início de uma longa e cuidadosa construção de um relacionamento gay.

Desde então, somos dois a matar nossos leões diários. Já fomos quatro braços contra armas poderosas e duas vozes em harmonia, entoando cantos de paz e guerra na luta pelo nosso amor e pelo direito de nos amarmos a cada instante.


Camisinha sempre!

sábado, 19 de dezembro de 2009

O presépio - 19/12/09



Assustada, a menininha se detém diante da descoberta de uma aranha que tece sua teia no canto do banheiro e grita em pânico: "Mãe, tem um bicho aqui!". De lá, a mãe pergunta preocupada: "Que bicho, Beatriz?". Sem saber do que se trata, a pequena responde com segurança: "Acho que é um macaco!".

O Natal para nós sempre teve uma importância ímpar. A maior de todas as nossas celebrações era o orgulho da família musical que se reunia para tocar e cantar. Mas, bem antes da noite de 24 de dezembro, já compartilhávamos o que seria a nossa festa, aquela em que tudo fugia à rotina e os limites do dia a dia eram ultrapassados com permissão. Naquela noite feliz podíamos ficar acordados até mais tarde, esperando as 12 badaladas, quando cantávamos o "Noite Feliz" e fazíamos uma deliciosa troca de presentes, entre sorrisos de gratidão e surpresas.

Em dezembro, minha mãe montava o presépio: em torno da gruta central feita de um papel que imitava rocha, onde ficava a Sagrada Família, dezenas de personagens se espalhavam pelo cenário que ocupava um canto estratégico da sala de visitas. Coisas curiosas e encantadoras enchiam nossos olhos infantis, como o lago feito com um caco de espelho onde nadavam miniaturas de patinhos, o pastor que carregava um carneirinho nas costas, rodeado por bichinhos de pé, sentados, deitados na grama feita de serragem verde. Uma estrela-guia prateada, um galo no alto da colina, musgos, conchinhas de praia, areia e sapólio davam realidade à vila em miniatura, que ficaria em exposição até 6 de janeiro, quando os Reis Magos finalmente encontravam o Menino Jesus recém nascido.

Nós, as crianças, participávamos de todo o processo de construção daquela fantasia e nos deixávamos dominar pelo clima de expectativa docemente cultivado pelos adultos.

As casinhas do presépio talvez tenham sido mais importantes na nossa vida do que imaginemos. Pelo menos para um de nós. Depois de anos cultivando a sensibilidade do olhar observador e aprendendo a ver beleza nas construções simples e singelas de Belo Horizonte, do interior de Minas, de roças e povoados, Beatriz Leite hoje é uma artista plástica que se dedica a contar a nossa história através de miniaturas de algumas casas que guardam especial significado para famílias interessadas em perpetuar a lembrança de seus lares.

É essa mulher a menina que um dia confundiu uma aranha de banheiro com um macaco, a artista que hoje nos dá um exemplo de vida e envia seu convite de formatura onde se lê: "‘A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinqueta. O que ela quer da gente é coragem - Guimarães Rosa".

Camisinha sempre!


Maiores detalhes sobre o trabalho de Betariz Leite em http://www.familialeite.net/beleite/

domingo, 13 de dezembro de 2009

Oiapoque - 12/12/09



No Brasil, em 2009, foram mais de 150 paradas do orgulho e eventos de promoção da cidadania LGBT. De certa forma, a temporada começa com São Paulo e se estende pelo resto do ano. Uma das últimas a acontecer tem a cor de cacau que brilha na pele, cabelos negros que espetam da testa e amêndoas que saltam dos olhos curiosos, ariscos, precisos. Dia 20 de dezembro, acontece a quarta Parada do Orgulho Gay de Oiapoque, Amapá, no topo do Brasil, fronteira com a Guiana Francesa.

Oiapoque é formada por um conjunto de ruas em torno de uma praça que vem a ser um campo de futebol de areia e um terraço com quiosques de madeira onde se bebe cerveja, se ouve música brega e se paquera. Misturam-se prostitutas, garimpeiros, índios, franceses e natureza, no meio de chuva, floresta e liberdade. Ladeando a praça, o Palace Hotel, onde a travesti Lady faz as honras da casa. Requintada, trata a todos por senhor ou senhora e não se furta a rebuscar no atendimento, mostrando que sabe o quanto isso ali é contraste. As 6 da manhã, Lady já nos recebe para o café no salto, na seda ou no tailleur. Um luxo que nasceu em Uberlândia e veio aportar no topo do Brasil, sabe-se la a procura de que. Lady se trata na terceira pessoa e não se intimida em falar de si: "a Lady sabe muito bem o que está por baixo dessa roupa".

Na outra ponta está o Luciano (Silva, que ninguém conhece: pergunte pelo Luciano Totalflex). Técnico em Patologia Clínica que nunca exerceu a profissão, é o dono de uma banca de Tacacá, comida típica paraense que faz sucesso na cidade e garante sua subsistência. É ele que está a frente do GGLOF - Grupo de Gays e Lésbicas do Oiapoque e Fronteira, responsável pela organização da Parada e pelas ações de prevenção as DST-AIDS com os gays da cidade. Esse ano levam uma mensagem de prevenção: o HIV desconhece as fronteiras legais e encontrou ali mais uma porta de entrada no país. A Parada termina num delicioso campeonato de Queimada disputado entre os times de lésbicas, gays, heteros e quem quiser se organizar.

Luciano me conta que os índios convivem e respeitam seus homossexuais. O índio gay abandona a família e monta sua oca separada, onde recebe seus companheiros. Normalmente, eles se relacionam entre si, mas, em geral, ainda resistem ao uso do preservativo. Muitos tem deixado suas aldeias para estudarem em Oiapoque e são vistos em grupos dando uma pinta na praça.

O GGLOF se orgulha dos avanços que já conseguiu na cidade: ninguém vai te molestar na rua se perceber que você é gay; nem te incomodar na boate: ela é de todos. Ninguém vai te agredir se você atravessar a praça de mãos dadas com seu namorado. Isso é que é Brasil!

Camisinha sempre!


sábado, 5 de dezembro de 2009

Minha metade - 05/12/09



Maldito caminho! Maldito ponto de ônibus! Mesmo às 6 da manhã, passar por aquela rua dava calafrios. Nos primeiros dias saí cinco minutos mais cedo para dar a volta por outro trajeto, mais longo, e evitar aquela calçada, mas hoje não. 

Ir para a escola se tornara um tormento. E tudo porque eu havia decidido enfrentar um colega que achou que podia me seduzir. Preocupado em assegurar firmes as trancas do meu armário, enfrentei também as minhas inseguranças. Naquela época, ser gay não fazia parte dos meus planos e eu teimava acreditando que tinha poderes para decidir isso.

Tudo começou com uma conversa de querer ser mais meu amigo e ir lá em casa, no meio da tarde, para ver TV. Depois, aquele papo de que havia por trás um interesse em namorar a minha irmã. Conversa! Seu interesse era em mim, no que eu representava e no que despertava nele. Pessoa errada, momento errado, estratégia errada.

Revivo cada detalhe enquanto aperto o passo. As lembranças se tornavam mais fortes, como as batidas nervosas do meu coração de menino. A pior parte do caminho se aproximava e a vontade era de voltar.

Foi numa tarde, depois das tarefas da escola, que ele chegou, fechou a porta e começou a me incomodar, me passando a mão enquanto eu via TV. Pedi que parasse, saí de perto, evitei, até reagir com violência, o que gerou uma briga de socos, empurrões e pontapés que terminou em rostos vermelhos e alguns arranhões, além de ofensas mútuas e ameaças: um dia ainda iríamos nos encontrar na rua e aí acertarmos aquela parada. Uma rusga provocada por alguém que um dia me desejou com a intenção de tocar, depois me difamar e tirar vantagem com os amigos. Típico.

Numa época de sonhos, em que já considerava o mundo inteiro pequeno para mim, a última coisa que eu precisava era de um inimigo que o reduzisse à metade: numa eu me encontrava; na outra, ele. Onde ele estava eu não queria estar, e era melhor que as coisas ficassem assim, com cada um no seu canto.

Mas existia aquele caminho. Às seis da manhã eu tinha que passar em frente à sua casa e ali, cedinho, seríamos só nós dois e o "acerto da parada". Era a primeira vez que eu era ameaçado por uma situação que envolvia minha sexualidade, e eu sabia que a decisão sobre quando e quem iria me tocar não cabia a mais ninguém a não ser a mim. Se um dia eu quisesse, rolaria; se não, não.

Pois, as 6 da manhã ele estava lá me esperando, com o rosto inchado de quem se obrigou a acordar cedo para cumprir sua ameaça. Com ar de valente, me abordou desafiante, prevendo que eu o evitaria, correria, fugiria chorando. Não. Encarei. Respondi. Eu ali, nervoso, enfrentando-o, e ele soltando suas ofensas, sem saber como reagir à mudança do enredo que ele tinha imaginado. a bichinha não era tão medrosa assim. Sem um empurrão sequer, voltou-se para casa resmungando ameaças, entrou pelo portão e me esqueceu. 

Assim, reconquistei a outra metade de um mundo que sempre fora minha e que continuava pequeno para quem sonhava grande.

Camisinha sempre!