sábado, 23 de fevereiro de 2008

Casal hetero em boate gay – 23/02/2008


Há pouco tempo, numa das nossas raras baladas noturnas extra-mundinho, fomos dançar numa boate gay. Sempre somos muito bem recebidos nesses locais, não só pelos empresários da noite e seus colaboradores, como pelos amigos freqüentadores e nos divertimos muito. 


Eis que notamos um casal - homem e mulher - raro nessas boates. Muito alegres, provavelmente decidiram se jogar numa balada diferente e escolheram a noite GLS, sempre muito animada, alto astral, repleta de tipos interessantes e isenta de preconceitos, inclusive com os heterossexuais. A música realmente era ótima, o casal tinha todo o motivo para estar se divertindo, e iniciaram uma dança sensual, provocante, atrevida, over para qualquer boate. 


Estava claro que eles vieram à boate gay em busca de um lugar onde tudo fosse permitido. Traziam consigo todos os estereótipos sobre os gays, inclusive a promiscuidade, e decidiram viver uma noite de prazeres. Para eles, o fato de ser uma boate GLS significava necessariamente um ambiente onde a libido estaria pairando no ar e convidando as pessoas à sensualidade. Talvez estivesse mesmo, pois é ali que temos a liberdade de paquerar e ser paquerado por outros caras iguais à gente, sem sermos discriminados, agredidos ou expulsos. A própria presença do casal hetero reforçava esse ambiente sem preconceito. 


Senhores da situação, eram o retrato da heteronormatividade. Sua dança sensual informava que eles podiam tudo, em qualquer lugar, até mesmo onde fossem minoria. Mesmo ali, onde se comportavam como os normais, entre os diferentes. 


Apesar da conexão imaginária entre homossexualidade e rebeldia, ainda somos um grupo carente do aconchego da aprovação. Quando um casal heterossexual vai a uma boate gay, nós somos gratos a ele. Gratos por não terem preconceitos, por escolherem estar no nosso ambiente, por nos aceitarem como somos. Quando um político nos apoia, quando um governo promove algum tipo de política pública para nós, estamos sempre agradecendo por sermos lembrados entre os "normais". 


Não queremos ser tolerados. Queremos ser respeitados. E quando um casal hetero entra numa boate gay, ele deve pode tudo, ao contrário dos homossexuais que não recebem o mesmo tratamento numa boate heterossexual. 


Ao recebermos bem um casal heterossexual, entendemos que estamos conquistando um aliado, um multiplicador, alguém que se indigne conosco das piadinhas preconceituosas, fofoquinhas pelas costas, risinhos e trejeitos que nos ridicularizam, e as malditas generalizações que perpetuam o preconceito contra nós. É com essas presenças em nosso meio que deixamos de ser gueto. É ali que as pessoas vão ver o quanto é natural o jogo de sedução que acontece entre os gays e o quanto ele se assemelha ao dos não gays. 


Portanto, a desconstrução do preconceito não se dá pelo simples fato do casal hetero ir dançar na boate gay, assim como não se dá pelo fato de heteros trabalharem junto com gays, ou conviverem conosco. Ela acontece no milagre da multiplicação, na conquista de aliados num novo modelo de educação e comportamento que considere e respeite as diferenças. 


Camisinha sempre!

sábado, 16 de fevereiro de 2008

ONG não é governo – 16/02/2008


O jornal O TEMPO, durante esta semana, dedicou importante espaço em suas páginas para debater a guerra fiscal entre Estados que oferecem cada vez mais vantagens à iniciativa privada para que se instalem em seus municípios e, com isso, canalizem empregos e progresso para a região. A disputa tem provocado a evasão de empresas de importantes cidades, como é o caso de Juiz de Fora, que perdeu nos últimos quatro anos 35 delas, atraídas por incentivos fiscais dos municípios fluminenses. Para reverter a situação, o prefeito Alberto Bejani (PDT) declarou que vai fazer até concessão de água. 

A urgência com que se buscou uma solução para o problema da evasão das empresas não tem sido a mesma quando se trata de resolver a penosa situação financeira das ONGs brasileiras. Aliás, a CPI das ONGs nivelou por baixo todas as organizações do terceiro setor, taxando-as de corruptas, fonte de desvio de recursos, ralo por onde está se escoando o dinheiro público, independente de sua história, tradição, seus ganhos, propósitos e sua correção, como é o caso de muitas delas. 

A legislação brasileira que trata de convênios com o poder público não diferencia o grande do pequeno, o privado do público, as ONGs das prefeituras ou do Estado. Uma ONG que faz um convênio com o governo para atender 30, 40 crianças, recebe o mesmo tratamento e tem que cumprir as mesmas exigências administrativas que uma prefeitura de capital, dotada de uma gigantesca máquina, técnicos, sistemas, exclusivamente dedicados a isso. Ao tratar ONG como órgãos públicos, o governo tem penalizado enorme contingente de organizações da sociedade civil que não conseguem se livrar das amarras burocráticas legais e acabam enquadradas como inadimplentes. 

O terceiro setor, em todas as áreas – sejam grupos ecológicos, de cultura, defesa de direitos, promoção da saúde, amparo aos necessitados, fomento de atividades econômicas etc – está sendo vítima de uma verdadeira "caça aos bruxos", a partir de algumas denúncias de desvio de dinheiro e instauração de uma CPI que colocou cidadãos de bem ao lado de espertalhões que se enriqueceram desonestamente com organizações fantasmas e aplicações questionáveis de recursos de convênios. Conseqüentemente, as portas vão se fechando, populações deixam de ser assistidas, vulnerabilidades crescem e trabalhadores tornam-se suspeitos e desiludidos. 

Não é à toa que as ONGs GLBT estão encerrando suas atividades, graças a problemas nas prestações de contas dos financiamentos do programa Brasil sem Homofobia. Centenas de Pontos de Cultura estão parados por não conseguirem cumprir as exigências burocráticas dos convênios do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura. Estão paralisadas as atividades de formação, ensaios, apresentações, cultura digital, enfim, um rol de ações que vinham cumprindo e que compõem a enaltecedora e tão necessária tarefa de resgatar as manifestações culturais autênticas brasileiras. 

Isso deixa à deriva um contingente significativo de profissionais que, provocados e encantados com a possibilidade de defenderem uma causa e promoverem a melhoria da qualidade de vida de seu povo, responderam à chamada do governo e viram nesses projetos uma forma de se emanciparem socialmente. Hoje, além de serem proibidos de receber qualquer remuneração, são devedores, tratados como desonestos, obrigados a devolver aos cofres públicos recursos que já não existem e que garantiram durante um tempo a manutenção dos espaços de convivência e formação onde estão instalados. 

O terceiro setor também gera empregos, além de ser um espaço de formação – através das vagas para estágios e promoção do voluntariado, que não se encontra na iniciativa privada. O terceiro setor cumpre um papel complementar às ações governamentais, age onde o governo deveria atuar e não atua. É legítima e necessária a aplicação dos (nossos) recursos públicos no financiamento de projetos de ONG e sua manutenção. Parte dos (nossos) recursos financeiros governamentais se destina à defesa de direitos e promoção da cidadania, o que é efetivamente executado via parcerias com o terceiro setor. 

As ONGs de Minas Gerais não receberam terrenos ou isenção de impostos e são penalizadas quando utilizam os recursos que captam do governo para pagar suas despesas de manutenção ou remunerar sua equipe. São essas despesas que têm provocado essa enxurrada de inadimplências e fechado as portas de nossas organizações. O nó, na maioria das vezes, está exatamente no pagamento daqueles que efetivamente trabalham e das contas de energia elétrica, aluguel, IPTU, telefone. E água. A mesma água que o prefeito de Juiz de Fora está oferecendo para as empresas que permanecerem na cidade. Só que bem menos. 

Camisinha sempre!

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Quem quer, age – 09/02/2008


Por mais que lutemos, por mais que tenhamos vitórias, os gays mineiros continuam sujeitos à crueldade da homofobia. Nossa tradicional família mineira parece assistir de camarote a luta das minorias sociais, a evolução dos costumes, mas se isenta e se mantém fora do processo, como se ele não nos dissesse respeito, como se não houvesse homossexuais em nosso Estado. Recentemente, um rapaz de São João del Rei foi cruelmente atacado por um grupo de cerca de 20 homofóbicos que, durante mais de 15 minutos, o agrediram até que conseguisse fugir desfigurado, sangrando, apavorado. 

Tudo começou com a tradicional prepotência machista, comum no nosso dia a dia, verdadeira arma nas mãos de pessoas que conseguem tirar proveito da fragilidade do outro nessas situações. Um mototaxista sanjoanense se sentiu prejudicado por algum tipo de acidente com sua moto e decidiu imputar a responsabilidade ao gay que estacionara seu carro por perto. Apesar das tentativas do rapaz em elucidar o engano, das propostas de solução, inclusive com a presença de algum tipo de autoridade policial que pudesse resolver o problema, o motoqueiro insistia na acusação e reuniu um grupo de amigos que decidiu fazer justiça com as próprias mãos – e pés, e paus e tudo que pudesse servir para bater no gay. A polícia foi parcial, negou-se a ouvir as duas partes com a mesma isenção e ainda se recusou a registrar o boletim de ocorrência com a história do homossexual. 

Incoerentemente, São João del Rei comemorou recentemente a aprovação de lei municipal que pune atitudes de preconceito contra os homossexuais naquele município, seguindo o exemplo de mais de 20 outros municípios em nosso Estado. Como se não bastasse, a população LGBT daquela cidade, berço de justiceiros como Tiradentes, Bárbara Heliodora e Tancredo Neves, está coberta pela Lei Estadual 14.170, que protege todos os homossexuais de Minas Gerais ou aqueles e aquelas que, mesmo não sendo mineiros, sofram qualquer tipo de constrangimento em nosso Estado. 

Para efetivamente se fazer cumprir nossas leis e garantir nossa cidadania, os grupos organizados, em parceria com o poder público, criaram uma rede de atenção aos LGBT, formada pelos Centros de Referência (CR). Cerca de 50 CRs estão em funcionamento em todo o país. Em Minas Gerais, temos pelo menos quatro, mas nenhum em São João del Rei. Estão em Belo Horizonte, Juiz de Fora, Alfenas e Uberaba oferecendo apoio, não só jurídico, mas também psicológico e assistência social às vítimas de discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, o que tem dado bons resultados. 

Estatísticas 

Ao serem idealizados os CRs, as estatísticas apuradas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República apontavam para uma assustadora impunidade dos casos envolvendo homofobia no Brasil, chegando a mais de 90% de crimes não apurados e, consequentemente, sem punição aos agressores, como era o caso do Estado do Amazonas. Disponibilizar advogados, psicólogos e assistentes sociais para essa população, dentro de suas próprias organizações, foi uma tentativa de abrir as portas para que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais não fossem constrangidos nos conservadores serviços tradicionais, e que chegassem às delegacias ou aos tribunais respaldados por profissionais que os ajudassem a fazer valer seus direitos. 

É incoerente criar qualquer tipo de exigência que afaste ou dificulte o acesso dos homossexuais aos Centros de Referência. Não faz sentido impor condições prévias para que sejam atendidos. Agindo assim, estaremos nos transformando em mais um departamento da máquina governamental, cercado pelos conhecidos artifícios burocráticos que dificultam tanto a efetiva participação da sociedade civil no controle social dessa engrenagem que, em suma, serve àqueles que não estão interessados em nos ter por perto. 

O caso de São João del Rei é somente mais um e muito pouco foi feito para garantir a Justiça ao gay agredido, apesar das denúncias públicas e do acolhimento oferecido pelo bravo e recém-fundado Movimento Gay da Região das Vertentes (MGRV), que agiu imediatamente, mesmo não dispondo de estrutura para isso. O CR de Minas continua aguardando o cumprimento de formalidades para agir. Os demais não têm pernas para isso. 

Não podemos nos prender a documentos, boletins de ocorrências, certidões ou etapas hierárquicas que somente irão adiar uma solução e desanimar ainda mais aqueles que já foram tão ofendidos. Alimentar essa máquina burocrática é negar o princípio dos CRs e efetivamente se render à impunidade que tem fortalecido tanto nossos algozes homofóbicos. 

Camisinha sempre!

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Quem cozinha? – 02/02/2008


Esta coluna completa amanhã um ano de presença semanal no "Magazine GLS" de O TEMPO. Durante estes 12 meses, a diversidade de todas as homossexualidades se fez presente em abordagens que foram dos jovens aos idosos, do privado ao público, do político ao econômico, do religioso ao profano, sempre procurando inserir o tema na pauta das discussões e desmistificar a homossexualidade, ainda tão cercada de preconceitos. A ideia sempre foi tratar com naturalidade e dignidade o jeito de ser, o comportamento, a cultura desses cidadãos e cidadãs gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais que convivem nessa sociedade plural e reivindicam espaço e respeito.
Neste dia de aniversário, pensei em, mais uma vez, tentar esclarecer aos leitores um pouquinho do que é a nossa vida e desconstruir ideias erradas, dúvidas, jogando na mesa algumas perguntas caladas, que não precisam mais permanecer assim.
As relações homossexuais ainda despertam a curiosidade dos heterossexuais que permanecem distantes desse universo. Com base nesse primeiro conceito de família que carimba a nossa memória virgem, ainda no útero, reproduzimos o que é ser pai, mãe, filho e filha e o papel do masculino e feminino nesse convívio. Por mais que o progresso e a evolução nos levem a questionar esses papéis e a reavaliar alguns componentes intrinsecamente ligados ao conceito tradicional de família, notadamente nos países latinos, ainda somos formados para reproduzir uma estrutura rígida e injusta de dominação, subserviência, obediência e desigualdade.
Apesar de todos os questionamentos das feministas, dos jovens, dos democratas, ainda somos educados e educamos nossos filhos em padrões heteronormativos machistas, patriarcais e hierarquicamente definidos: alguém sempre manda em alguém. Assim, é difícil para alguns entender o que vem a ser uma relação entre dois iguais, homens ou mulheres, quanto mais uma família que os tenha como eixo central. É comum nos depararmos com a tentativa de enquadrar casais homossexuais nos padrões heterossexuais, o que definitivamente não dá certo. Nós mesmos, gays e lésbicas, educados numa cultura heterossexista, tendemos a reproduzi-la entre nós e os conflitos são inevitáveis. Ninguém se entende.
Um casal conhecido está vivendo um drama bastante comum entre nós. Dois homens, educados para serem chefes de família, que se amam e se entendem sexualmente, mas que não estão conseguindo lidar com a confusão que está se estabelecendo entre o papel que desempenham nas suas relações sexuais e com o gênero aliado a eles. Criaram uma relação – e efetivamente uma cobrança – entre a posição sexual de preferência e as tarefas atribuídas ao gênero que a desempenha.
Isso não é tão raro. Uma ocasião, quando eu e meu companheiro nos divertíamos com um grupo de recém conhecidos numa mesa de bar, entre copos de cervejas, tira-gostos e intimidades, uma mais xereta se inquietava querendo descobrir o papel sexual de cada um, uma vez que na sua cabeça só era possível uma relação entre homem e mulher, logo, alguém deveria fazer o papel de mulher e o outro de homem. Em bom português, a indiscreta queria saber quem era o ativo e quem era o passivo na nossa cama (como se isso dissesse respeito a alguém, senão a nós mesmos). Numa tentativa de ser menos direta, ela escolheu dar uma volta e perguntou: – Quem cozinha na sua casa? Até hoje nos divertimos com isso e citamos o caso como um exemplo do quanto as tarefas domésticas estão aliadas aos gêneros.
É importante que as pessoas aprendam a conviver com a intimidade de um casal homossexual, assim como convivem com a de um casal heterossexual. É importante que entendam que a relação estabelecida entre dois homens ou duas mulheres que se amam não será jamais igual à estabelecida entre um homem e uma mulher e é aí que mora o grande desafio a que estamos sujeitos. Na construção dessa família, a argamassa que nos edifica é diferente. Fatores como companheirismo e cumplicidade ganham outra dimensão e o resultado pode ser tão sólido – ou mais – que as relações estabelecidas entre os heterossexuais.
Espero que esse primeiro ano como colunista de O TEMPO tenha ajudado na construção de uma cidadania digna para os homossexuais mineiros. Ainda acredito piamente que a maior ferramenta de que dispomos para acabar com o preconceito contra nós é a comunicação.
Parabéns para nós e, cozinhando ou não, camisinha sempre!