sábado, 31 de maio de 2008

50 – 31/05/2008




Esse dia, com certeza iria chegar. Não esperava que fosse tão cedo, mas sabia que teria que enfrentar o espelho, o desgaste do corpo e aparentar os 50 anos que completo amanhã. Aos 50 anos eu não vejo só uma luz no fim do túnel, mas o próprio fim do túnel, se é que me entendem.

E de nada adiantam a complacência e a solidariedade dos amigos na tentativa de suavizar os desgastes provocados pela passagem do tempo. Para quem tem senso crítico, qualquer tentativa de dizer que você não aparenta sua idade te lembra a idade que você tem. Aos 50 anos só me resta reconhecer o tempo como um companheiro, misto de carrasco e curandeiro, que me castiga ao mesmo tempo em que oferece o alívio para tantas outras dores da alma.

Quando eu nasci, em 1958, o primeiro Fusca estava sendo fabricado no Brasil. Nossa seleção vencia sua primeira Copa do Mundo na Suécia e, a Portela, o Carnaval carioca. Pio XII morria e dava lugar ao papa João XXIII, encerrando uma das fases mais moralistas da nossa história. Junto comigo, em plena Guerra Fria, nasceram: Michel Jackson, Sharon Stone, Edson Celulari, Pedro Bial, Michele Pfiffer, Victor Fazano, a Madonna e o Cazuza.

Por outro lado, em 58 faleceu Assis Valente, compositor gay, autor de "Cidade Maravilhosa" e "Brasil Pandeiro". Neste ano, João Gilberto gravou "Chega de Saudades" e alguns o elegem o ano de nascimento da Bossa Nova, em pleno governo Juscelino Kubitschek.

Mas, 1958 foi palco para um dos mais curiosos acontecimentos políticos deste país: a candidatura sob forma de protesto, do hipopótamo Cacareco, residente permanente do Zoológico da cidade, que acabou se elegendo para uma das 45 cadeiras da Câmara Municipal de São Paulo com mais de 100 mil votos.

 A candidatura do Cacareco nasceu em Osasco, em torno de um movimento de emancipação do bairro mais populoso do município de São Paulo. Sua campanha foi uma comoção e mobilizou a população da cidade, que votou em massa no hipopótamo. Em protesto contra o Supremo Tribunal, que negou as pretensões de seus moradores, 100 mil cédulas foram impressas com o nome do Cacareco.

"Está faltando leite, está faltando pão, criança sem escola não tem mais solução, a queixa desse povo não encontra eco, e foi eleito o cacareco", dizia a marchinha de Carnaval.

Ainda teve Adalgisa Colombo vencendo o concurso Miss Brasil e a curiosa criação do bambolê na forma como conhecemos, de plástico, colorido.

É… Acho que tenho bons motivos para me simpatizar com 1958.
Camisinha sempre!

sábado, 24 de maio de 2008

Danilo – 24/05/2008



Tenho vivido a real sensação de estar perdendo. Pessoas, tempo, juventude, espaço… Minhas fraquezas estão expostas diante de perdas que não se revertem e das quais me torno inerte.
De repente, me deparo com um amigo, um aliado, que convive com um mioma cerebral que insiste em se impor à quimio e à radioterapia. E assisto sua evolução sem poder resgatar sua capacidade de falar, escrever, conversar comigo.
Danilo Oliveira, o presidente do Clube Rainbow, uma das mais bem-sucedidas organizações voltadas para o público GLS de Belo Horizonte, está doente. Rodeado de atenções de seu companheiro e parentes próximos, mas esquecido pelos gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e heterossexuais dessa cidade, a quem dedicou grande parte de sua vida, seu tempo, sua saúde.
Danilo é um dos importantes personagens da história recente do movimento GLBT de Minas Gerais.Quem não se lembra do "Só pra Nós", na rua Patrocínio, Carlos Prates, sede do Rainbow? Um aconchegante espaço que funcionava no quintal, nos fundos da casa e que atraía os gays e lésbicas de Belo Horizonte para deliciosas tardes e noites de convivência.
Danilo, durante muito tempo representou a militância efetiva da capital. Foi através de seu trabalho que a Parada de Belô cresceu, apesar da insistência de alguns em negar a sua passagem pela organização e sua importância para a história do maior evento GLBT da cidade. Foi esse tipo de rivalidade que causou a derrota da promissora candidatura do Danilo a vereador, em 2004.
A lei 8.176, que penaliza atitudes homofóbicas em Belo Horizonte, ou a 14.170, em Minas Gerais, foram umas das bandeiras do Danilo. Era ele que comparecia, provocava audiências públicas, convocava a militância, visitava deputados e vereadores, preparava documentos, dava entrevistas, muitas vezes enfrentando as derrotas ou vibrando sozinho com as vitórias.
A turma do Danilo distribuía preservativos na cena de Belo Horizonte e editava o Jornal do Clube Rainbow, entregue gratuitamente nos bares, boates e saunas. Na sede da ONG foram realizados vários registros de uniões estáveis entre gays ou lésbicas, alguns rodeados de pompa e circunstância e muitas das organizações que hoje se espalham pelo estado nasceram com seu apoio e inspiração.
Danilo escreveu o livro "Éramos Dois", no qual conta sua vida, seus conflitos com a homossexualidade e parte da história do movimento GLBT de Minas Gerais. Os recursos obtidos com a venda desse livro podem ajudá-lo nesse momento. Compre um e leia. Você verá que não faltam motivos para aplaudi-lo e lamentar com tristeza seu estado de saúde.
Camisinha sempre!

sábado, 17 de maio de 2008

Eduardo – 17/05/2008



Fui surpreendido pela visita do Eduardo. Talvez tenha se atrevido a subir as escadas da sede do MGM porque naquele dia a porta estava sendo mantida aberta, pois o interfone resolveu não funcionar. Eduardo revelou que já rondara a casa algumas vezes, sem coragem para entrar. Naquele dia, entrou.

Um senhor alto, magro, aparentando algo em torno de 60 anos, sofrendo profundamente por ser gay. Encontrei-o assentado, curvado sob os ombros, cabisbaixo, o olhar no chão, revelando humildade, medo, incerteza e vergonha.
Sua voz quase não se ouvia quando revelou que decidira nos procurar por recomendação de sua filha, a partir de vestígios que denunciavam sua homossexualidade. Havia se contido durante anos, sufocando seus desejos e alimentando fantasias homoeróticas que, acreditava, nunca se realizariam.
Mas nunca é tempo demais. Viúvo, viu seus desejos secretos explodirem, provocados pela solidão, e não se conteve mais. Passou a viver relações clandestinas com garotos de programas, se relacionou com aproveitadores e bandidos que vinham se valendo de sua vulnerabilidade para extorqui-lo, humilhá-lo e violentá-lo.
Eduardo queria sumir, arrumar um quarto-e-sala e ir viver com alguém que o compreendesse, apesar de não acreditar que homossexuais fossem capazes de estabelecer relações estáveis duradouras além do sexo. Tendia a estabelecer uma relação de prazer e recompensa com seus parceiros secretos e as migalhas de prazer que recebia eram recompensadas com uma cesta básica, um tratamento de dentes, uma gorjeta, uma refeição. Nunca soube o que é homoafeto e ainda era constantemente menosprezado, chantageado e humilhado.
Convidei-o a freqüentar o MGM e se relacionar com pessoas iguais a ele, a perceber que seu desejo é legítimo e pode ser compartilhado fora das sombras e dos perigos. No MGM ele receberá apoio psicológico, jurídico, se precisar, um ambiente saudável, seguro, momentos de lazer e, aos 60 anos, terá a oportunidade de se conhecer e conviver bem com sua sexualidade. Como um adolescente gay que se inicia na vida homossexual.
Obrigado à filha do Eduardo, que percebeu o conflito e os sofrimentos do pai e encaminhou-o não a charlatães que prometem curá-lo, mas aos seus iguais, onde ele poderá encontrar compreensão e ser mais feliz.

Camisinha sempre!

sábado, 10 de maio de 2008

De Luta – 10/05/2008

 
Estamos adotando a linguagem da violência. Acordamos, elegemos nossos inimigos e vamos à luta. Lutar é a palavra. Numa inversão total de valores, é virtuoso o que é "de luta". Valoroso é aquele que tem garra, como as águias, que as usam para matar.

Foi assim que aprendemos e ensinamos. Nós, meninos, recebemos nossa primeira camisa de um time de futebol ao nascer. O grito de guerra da torcida está entre os primeiros sons que ouvimos e muitas vezes, uma das primeiras palavras que balbuciamos. Uma marca da educação masculina que traz, a reboque, o inimigo, o adversário, a luta.

Hoje, o outro vence e tripudia, irrita com seu gritinho de guerra, menospreza suas armas e enaltece sua superioridade. Amanhã, você ganha e faz o mesmo, com direito (de resposta) adquirido. A linguagem da troca de insultos, socos, provocações torna-se a regra. A lei maior.

Num mundo "machonormativo", esse comportamento se espalha. Times de futebol adversários se tornam rivais, e suas torcidas, exércitos inimigos que disputam o título de "melhores". Para isso, é preciso que os outros sejam piores, menores e a violência enfraquece-os. Assim, vence o mais forte e agressivo, aquele que tem mais garra, o mais "de luta".

As igrejas lutam contra os seus demônios. Legitimam a violência contra aqueles que julgam pecadores, possuem seus cânticos, slogans e formas de ridicularizar os derrotados.

A iniciativa privada adota o marketing de guerra e trata seus empregados como soldados de um exército que possui um inimigo a ser vencido, uma meta a ser alcançada, e para isso contam com suas armas e estratégias.

Nos movimentos sociais não tem sido diferente. O clima de competição tem feito seus estragos. Lutadores com garra têm transferido sua linguagem de disputa de poder, gritos de guerra, seu tripúdio, armações, conchavos e violência para dentro de suas instâncias, elegendo inimigos entre suas próprias fileiras e provocando o esvaziamento de causas que já possuem seus próprios adversários.

Na política partidária, a selvageria também já tomou conta. O lema é "vence o mais forte, quem se articula melhor, quem tem mais a oferecer". O outro partido, ou é aliado ou é inimigo e a disputa se torna a essência; a vitória nos votos, o fim. Repetem-se os slogans, os gritos de guerra, as danças zombeteiras e o tom de desprezo para confirmar a triste e lamentável forma que adotamos para nos relacionar. Lutando.

Camisinha sempre!

sábado, 3 de maio de 2008

Velhos heróis – 03/05/2008



Meu avô era um artista. Músico sensível, emotivo, valorizava a tradição e a autoridade. Respeito aos mais velhos na nossa família sempre foi lei e fez algumas vítimas entre os adolescentes que ousaram se rebelar contra isso, apesar de sempre acolher de volta os atrevidos; até mesmo os chatos, como eu. Foi ali que aprendi a não cobiçar o lugar de ninguém e, sim, conquistar o meu.

Foi ali também que aprendi a admirar a maturidade e o saber acumulado, por anos de experiência, por erros e acertos que acabam outorgando aos mais velhos o direito de orientar o caminho, o lugar de farol e condutor de uma estrada que só não é mais tortuosa graças às cabeçadas que eles deram. Isso tudo me é útil hoje, alicerça minhas relações pessoais e marca minha atuação política não só no movimento GLBT.

Quando comecei na militância e não sabia sequer que havia uma história de luta pelos direitos dos homossexuais no Brasil, foi "Devassos no Paraíso" que me introduziu nesse novo velho mundo. João Silvério Trevisan é figurinha carimbada no meu álbum.

Quando iniciamos o MGM e sentimos a necessidade de material impresso para repassar a um pai desorientado ou um gay perdido, descobrimos que há anos o professor Luiz Mott já produzia com maestria e qualidade uns livretos com jeito de cordel e, antes mesmo de pedirmos, recebemos um pacote com alguns exemplares para compor a nossa biblioteca.

Não passa um dia sem que circule pela Internet um alerta, uma denúncia, um outro ponto de vista do professor Mott, sempre atento às injustiças, à garantia do espaço conquistado, às oportunidades de novas frentes de luta. Um trabalho atento e voluntário que alguns jovens gays, rebeldes sem causa, não são capazes de reconhecer.

Além disso, o fundador do Grupo Gay da Bahia é o responsável por importantes levantamentos estatísticos utilizados em todas as falas, discursos e artigos de quem se refere à violência contra os GLBT, como o número de assassinatos por homofobia no Brasil.

Foi Luiz Mott que cunhou em nós a própria lógica pragmática do embate político e da luta por direitos dos homossexuais no país. Mesmo que às vezes discordemos, não posso deixar de reconhecer seu valor e reservar lugar de honra na minha galeria para o amigo e antropólogo radicado na Bahia.

Em tempos de Conferência GLBT, é inadmissível que essas pessoas sejam esquecidas e imprescindível que sejam os primeiros convidados a comporem as mesas que darão o tom que o evento merece. Na primeira conferência GLBT do mundo, vamos reconhecer e garantir aos nossos heróis o lugar de destaque que merecem.

Camisinha sempre!