A primeira vez a gente nunca esquece. O menino se chamava Ivair e
insistia em me aporrinhar. Na verdade, ele me incomodava porque me denunciava.
Eu era gay e sabia que era, mas não queria ser. Lutava arduamente para não
parecer: naquela idade parecer era mais importante que ser.
Pois o Ivair ficava me enchendo. Ficava me imitando, caricaturando
meus gestos infantis – ou afeminados – de garoto de 10, 11 anos, me chamando de
bichinha e me passando a mão. Acho que todo gay já passou por isso e guarda na
memória o sabor degradante que tem a exposição pública de suas
particularidades, o questionamento da sua masculinidade, num momento de vida em
que nem a gente mesmo entende direito o que é ser homem.
Meninos não merecem esse sentimento. É o momento em que estamos
colocando os pés na rua. Não sabemos direito como as ameaças machucam, fora das
asas do nosso lar. Nosso pequeno repertório de comportamento ainda se restringe
à avaliação passional e parcial de pais, irmãos, primos. Até que, um belo dia,
o nosso mundo cresce com a rua, e o menino-homem encara os desafios.
Homens-meninos tão frágeis, tão virgens, tão inocentes que a violência da
chacota ali, na roda de moleques, toma proporções que deixam marcas para o
resto da vida.
O Ivair, entretanto, não era o único. Era só o menor. Tinha também
o Mico, que gostava de bater, apertar, imobilizar. Mais forte que eu, fazia com
que me sentisse covarde, menos macho ao evitar seus desafios. E aquele
mal-estar crescia, os apelidos surgiam e a verdade se transformava em um
monstro dividindo comigo o travesseiro molhado. Para virar homem teria que
mentir, fingir, deixar de ser e parecer gay. Aprender a linguagem da rua, o
rosnar, o bater, o ladrar. Era o que se esperava do menino que reivindicava o
direito de ser livre, de ganhar o mundo e fazer amigos.
Uma vez, na esquina onde nos reuníamos todas as noites para
conversar, brincar e aprender o que não se ensinava em casa, o Ivair e o Mico
vêm de novo com aquela conversa de veadinho, bichinha e passa a mão dali e
esfrega daqui. Decidido, resolvi colocar um fim no tormento e revidei. Minha
primeira briga de rua. Como um cachorro bravo, parti para cima do Ivair,
chorando, furioso, sem técnica, sem malícia, só com raiva. Engalfinhamos-nos no
chão, puxei seus cabelos, mordi, chutei, unhei e chorei.
Entre suspiros e arranhões fui para casa, para o meu quarto, e
deixei que as lágrimas fluíssem mais uma vez, quentes, no meu travesseiro,
companheiro de tantas solidões. Trancava-me assim num armário que só viria a
ser aberto muitos anos mais tarde, quando entendi o que significa ser gay e
decidi usar outras armas para lutar por respeito.
Camisinha sempre!
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